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domingo, 13 de março de 2011

Apocalipse Motorizado



O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado, enganado e frustrado por sua vez.
Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que cortar as praias em tiras pequenas – ou espremer tão fortemente as mansões – que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de todos.
Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, etal.)? Não perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao menos a um carro e que é até encargo do “governo” tornar possível que todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph nas estradas, às estações de férias.
A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens “privados”, ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir:
A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os momentos está figurativamente matando os “outros”, que aparecem meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. (“você nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas”, um amigo alemão ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris).
O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias. Uma revolução ideológica (“cultural “) seria necessária para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe dirigente (direita ou esquerda).
Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos.
Quando o carro foi inventado, ele o foi para prover poucos dos muito ricos com um privilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à velocidade e aos meios de transporte.
Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas – ele era muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta, ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto-propulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento eram completamente desconhecidos deles, e cuja manutenção e alimentação tiveram que confiar a especialistas. Aqui está o paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser aquele do usuário e consumidor – e não do proprietário e do mestre. Este veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do automóvel apenas escondia a dependência radical real.
Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas pudessem ser induzidas a viajar em carros, eles poderiam vender o combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as pessoas tornar-se-iam dependentes de uma fonte comercial de energia para sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvessem motoristas – e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto que uma única indústria possuía em monopólio.
Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes ofereceu? Apenas isto: “de agora em diante, como a nobreza e a burguesia, você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a você”.
As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai vertiginosamente – em Boston como em Paris, Roma, ou Londres – abaixo daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta.
Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número de vias expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço, mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a 20 kmh.
O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando gargalos – e por fim uma paralisação completa.
Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas, fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: “O americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir onde quiserem e de não estarem restritas às estradas de asfalto”.
É verdade, Illich aponta, que em países não-industrializados a viagem usa somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10 vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo – a partir de um determinado ponto – as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato matemático.
A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado – que requer então um segundo carro para que as compras possam ser feitas e para as crianças irem à escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos… e só. Na análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph, mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: “uma boa parte do trabalho diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho”. (Ivan Illich).
Talvez você esteja dizendo, “mas ao menos desta maneira você pode escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho”. Lá nós estamos, agora nós sabemos: “a cidade”, a grande cidade que por gerações foi considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é considerada agora um “inferno”. Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros.
De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada ao longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se prolongam nas procissões de para-choque-à-para-choque que vão (no máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do carro mais lento?
Nítido suficiente. Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro. Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração, espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.
No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l’Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de burgueses. Há um progresso para você!
A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função do carro – e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta, do ônibus, e do bonde, não é sequer mais aplicável nas cidades grandes como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e sua paisagem urbana (um deserto) diz, “estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’”. Em algumas cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como suspeita de crime.
Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar sozinho e dormir.
“As pessoas”, escreve Illich, “quebrarão as correntes do domínio do transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele”. Mas a fim de amar “o seu território” ele deve antes de mais nada ser habitável, e não congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, “nós traremos à baixo as grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por enquanto”.
Estas novas cidades poderiam ser federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos – e em especial crianças em idade escolar – passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só.
Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para “viver”, um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades, e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade.

Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Exílio


Uma maré gelada se agarrou ao litoral do sudeste brasileiro com determinação. Sua água escura e fria parece ter adotado as praias de São Sebastião, e também Guarujá, como morada de férias, do mesmo jeito que um gringo elege o Brasil e aqui fica, meio desbundado com a beleza e com a facilidade de se encostar.

Esse mesmo mar esfriou o vento sul e sudeste e empurrou sua temperatura baixa para dentro das florestas que resistem nas montanhas do litoral norte. Esses grupos de mata fechada são como revolucionários cubanos lutando contra o capitalismo e seus lotes imobiliários. São ilhas que, ao invés de Miami, têm o desenvolvimento de São Paulo como vizinho e ameaça.

Apenas com a diferença de que essa Cuba verde não vê seus moradores se jogando em balsas improvisadas rumo ao desenvolvimento e à grana. Na verdade, o que acontece é o contrário. Eu, que moro em São Paulo, me pego agora boiando em meu longboard no mar gelado e com ondas pequenas de Camburi. Têm locais juntos de mim mas a maioria dos surfistas que dominan o line up também não são daqui. Se lançaram na estrada com suas pranchas e desespero, esperando que o surfe os faça esquecer de onde precisam ganhar a vida para lembrarem de onde podem desfrutá-la. Eu sou um deles remando e torcendo para aceitarem meu pedido de asilo.

Os longboards ajudam a clorir a visão pois, com exceção do meu, a maioria é pintada de cores fortes que, num dia de sol e mar azul escuro como o de hoje, saturam o espetáculo. Essa era a primeira vez que surfo com tantos caras bons. Depois de cada onda, passam por mim sujeitos que, com muita elegância, manobram seus pranchões com a desenvoltura digna de filmes.

Algumas vezes, mais de um por onda e - sem deixarem o mau humor estragar o dia – sempre sorrindo por saberem que o mar é para todos. Essa visão me fez lembrar da matéria que havia lido na revista de surfe australiana Tracks, autoentitulada “A bíblia do Surfe”, sobre brasileiros invadindo aquele país.

O jornalista nos descreve como desesperados, expurgados do Brasil pela pobreza, violência e corrupção pública para crowdear as cidades da Gold Coast em busca de uma vida digna e repleta de boas ondas. Termina nos dando as boas-vindas, mas com uma sugestão: que não fôssemos para as melhores praias, mas para as cidades ao lado, onde não causaríamos tanto incômodo.

A unânimidade do artigo é a nossa falta de educação e de como “seríamos capazes de remar por cima de nossas próprias avós para dropar uma da série.”. Olho para o meu reflexo n’água, me viro e vejo todos os outros que estão surfando ao meu redor, felizes e silenciosos. Não nos reconheço naquela descrição. Não nesse dia.

Felipe Luchi, via Chasing the Lotus

segunda-feira, 26 de julho de 2010

O rejuvenescimento do ser na era do ter.



Outro dia, fui surfar com um amigo meu, que já surfou bem nos anos 80/90, mas ele estava totalmente fora de forma. Pai de uma filha, advogado e acima do peso, estava sem remada alguma, sem rip, há meses sem molhar a prancha Joca Secco (já empoeirada) na água.

Após ter colocado "pilha" para a sua volta triunfante ao surfe, ele aceitou meu convite e fomos surfar no meio da Barra, Rio de Janeiro. As ondas, nas séries, tinham cerca de 1 metro e meio e abriam (algumas fechavam, vamos ser francos) com pouco vento e maré cheia.

Não foi tão fácil, pois ele estava fora do rip. Há uma espécie de sintonia com as ondas, ou você se encaixa, se acha no mar, ou não, fica boiando, meio perdido, sem ação. O mar te cobra atitude, decisões imediatas e remada em dia.

É o famoso binômio ônus & bônus: Sem remada, sem recompensa. Com remada, com êxito na performance.
Ricardo Martins, um grande e conhecido shaper carioca, declarou há muitos anos (nunca me esqueci disso): "Você deve manter a remada em dia, surfando (quando der) mesmo nos dias horríveis, para poder surfar bem nos dias bons e perfeitos. Sem remada, não há muito prazer nesse esporte, pois você apanha o tempo todo do mar, que passa a ser um incômodo."

Creio que duas ou três vezes por semana (quando muito) é suficiente para que um pai de família, trabalhador, mantenha a sua remada em dia.
Falo de surfistas um pouco mais experientes, mas que não ficam na areia moscando, enquanto a vida passa. Estudamos, trabalhamos, educamos os nossos filhos, mas o segredo da energia/inspiração/motivação para o dia-a-dia é através do rejuvenescimento dentro d'água, em contato direto com a mãe natureza. Um mês fora d'água, nem pensar. 10 DIAS sem surfar, você já deve ficar preocupado e ligar o alerta vermelho para não ficar enferrujado, oxidado.

Quando mais ferrugem, menor a motivação de voltar ao surfe. Você cai numa espécie de marasmo, de acomodação perigosa. Daí vem a barriga de chopp, a falta de ânimo, o stress, a fadiga, enfim, a falta de vibração/energia do ser.

Vem a bola de neve de conseqüências ruinosas. Sem rip, sem inspiração, sem metas e sem sonhos, a vida fica mais pesada, mais depressiva e desgastante.
Por isso, não deixe a vida te levar. Não se leva nada dela também, mas você pode levá-la mais leve. Os momentos ficam, as ondas passam e o tempo voa.

Cedo ou tarde, sua jornada chegará ao fim. Não fique pensando muito, parado e inerte, pois, assim, jamais sairá do lugar. Você pode dar o primeiro passo, colocar a prancha no carro, tomar uma atitude e voltar a surfar.
Mas só voltar ao esporte não basta.

Lembrem-se de que é preciso manter o rip. Surfe é rip.

Vi no Chasing the Lotus

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O fim das surras pedagógicas



O presidente Lula assinou hoje um projeto de lei revolucionário: as palmadas e surras tidas como educativas, aplicadas há séculos pelos pais aos filhos, poderão ser punidas agora com advertências, encaminhamentos a programas de proteção à família e orientação especializada. E não só os pais, os amorosos e exemplares pais, coitados. Os professores e cuidadores (dos quais ninguém cuida) também ficam proibidos de beliscar, empurrar ou mesmo bater em menores de idade.

Até então, a Lei 8.069, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, condenava os maus-tratos contra a criança e o adolescente, mas não definia se os maus-tratos seriam físicos ou morais. Com o projeto assinado, o artigo 18 passa a definir “castigo corporal” como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”.

Em um país de cotidiana prática de tortura nas delegacias policiais, cometidas sempre contra os delinqüentes de fato ou em potência, a saber, negros e pobres; em um país cuja maior escola, para todo o povo, foi e tem sido a herança da escravidão, que naturalizou a dor contra pessoas como se fossem bestas; em um país que mal saiu de uma ditadura que matou, destruiu e mutilou brasileiros sob o aleijão ideológico de que apagavam terroristas, o projeto assinado pelo presidente é um salto para a civilização.

Pelos comentários que agora correm em toda a web, sabemos bem quem se opõe ao projeto de lei: vêm sempre de indivíduos de extrema-direita ou conservadores de todo gênero. Alguns podem ser tomados como representantes do pensamento de nossa educação pela porrada. Dentre os mais legíveis, excluídos os insultos sórdidos à pessoa do presidente, colho:

“… não aceito interferência do Estado dentro da minha casa, na condução da educação dos meus filhos… Os pais ficam nessa de dialogar e as crianças tomarão conta da casa. Não respeitando mais os pais, não respeitarão nenhum adulto… Não vai ter juiz, desembargador ou presidente, que vai me dizer como educar meus filhos. …Na minha opinião o ECA veio para estragar ainda mais a ordem em nosso pais, porque amparados por esse estatuto temos centenas de menores com 16, 17 anos praticando crimes e ficando impunes. Na minha opinião a lei mais forte é o direito dos pais de educarem seus filhos”.

Observem que a média de nossos bárbaros ainda nem assimilou o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que para eles é só eca, porcaria, nojo, nada mais. No entanto, creiam, o projeto de Lula segue uma tendência mundial. Ele cumpre uma recomendação do Comitê da Convenção sobre Direitos da Criança das Nações Unidas, para que os países passem a ter legislação própria referente ao tema. A Suécia nos antecipou em 1979. Depois vieram Áustria, Dinamarca, Noruega e Alemanha. Atualmente 25 países têm legislação para proibir essa prática. Na América do Sul, até então, apenas o Uruguai e a Venezuela possuíam lei semelhante. Agora, vem o Brasil. É tempo, há tempo não somos mais o fim do mundo.

O presidente Lula, do alto de sua cultura extraordinária (sinto que explicar isso exigiria um outro artigo), homem educado na vida política e sindical, traz agora para todos os brasileiros os avanços do resto do mundo. Eu, que fui criado sob o lema paterno de “bato num filho como quem bate num homem”, e que sob tão alto princípio recebi as lições educativas de surras de borracha, mangueira de jardim e socos, bem conheço o alcance do projeto assinado pelo presidente. Salve. Assuntos de desrespeito à pessoa, de brutalidade contra jovens, não são assuntos de foro íntimo, da vida privada, a se resolverem entre quatro paredes. Violência educativa não pode nem deve continuar a ser assunto restrito aos pais e doces educadores.

Com esse projeto, parece que chegou a hora de as crianças brasileiras receberem o mesmo afeto e cuidado que as mulheres e senhores classe média dispensam a seus cachorrinhos. Tão fofos, eles, os cachorrinhos.
Urariano Mota

terça-feira, 29 de junho de 2010

Porque prefiro surfar durante os jogos da "seleção do Dunga"

A Fifa controla o dinheiro, marca os adversários e dribla a Justiça

26 de junho de 2010
Flavia Tavares, de O Estado de S. Paulo
Enquanto o English Team sofria para passar às oitavas contra a Eslovênia, o escocês Andrew Jennings desfiava o sarcasmo adquirido ao longo da vida de repórter investigativo na Inglaterra, na BBC e em grandes jornais. Com a pontaria muito mais calibrada que a dos artilheiros desta Copa do Mundo, o jornalista vai relatando casos de corrupção que apurou para produzir seus três livros sobre o Comitê Olímpico Internacional (COI) e outro sobre a Federação Internacional de Futebol (Fifa) – mesmo sendo o único jornalista do mundo banido das coletivas da entidade desde 2003.
O jornalista inglês Andrew Jennings relata em livro casos de corrupção dentro da Fifa
Um dos escândalos relatados por ele em 2006, no livro Foul! The Secret World of Fifa (não traduzido no Brasil), teve um desfecho na sexta-feira. Altos dirigentes da organização máxima do futebol receberam propina, admitiu a Justiça suíça. Mas eles não serão punidos porque a lei do país, que é sede da Fifa, permitia o “bicho” na época.
Os figurões pagarão apenas os custos legais e suas identidades não serão reveladas. “É por isso que meu segundo livro sobre o tema será uma comparação da Fifa com o crime organizado”, conta. Ele optou por publicar a obra depois das eleições na entidade, em maio de 2011, embora duvide que alguém vá enfrentar o dono da bola, Joseph Blatter. “Ninguém ousa desafiar a Fifa porque eles controlam o dinheiro. E a imprensa cala”, dispara Jennings.
Em suas investigações sobre a Fifa, o que o senhor descobriu?
A Fifa é comandada por um pequeno grupo de homens – não há mulheres em altos postos da entidade e isso fala por si – que está lá há muitos anos. São homens em quem não devemos confiar e contra quem temos provas contundentes. Eles podem continuar no poder porque controlam o dinheiro. E tornam a vida dos dirigentes das confederações nacionais muito boa e fácil. Fico envergonhado porque ninguém se manifesta contra esse poder.
Como os dirigentes se manifestariam?
Zurique, sede da Fifa, é uma Pyongyang do futebol. O líder fala e os outros agradecem. Numa democracia é esperado que haja discordância, oposição. Na Fifa, não há. Eles têm um congresso a que, ironicamente, chamam de parlamento. São cerca de 600 delegados – acho que são 2 ou 3 por país representado, e são 208 países. Se você chegasse de Marte acharia que o mundo é perfeito, porque todos concordam. É vergonhoso. Nisso, a CBF é tão culpada quanto todas as outras confederações.

Que instrumentos a Fifa usa para manter esse poder?
A Fifa dá cerca de US$ 250 mil por ano para cada país investir em futebol. Na Europa, não precisamos desse dinheiro. A indústria do futebol fatura o suficiente para se alimentar. Mas é uma forma de a Fifa se manter. Esse dinheiro nunca é auditado. Na Suíça, a propina comercial não era ilegal até pouco tempo, apenas o suborno de oficiais do governo. O caso que eu conto no meu livro é justamente sobre um esquema de propinas pagas pela International Sport and Leisure (ISL), empresa que negociava os direitos televisivos e de marketing da Fifa. A história é cheia de detalhes, mas no final a ISL só foi responsabilizada pelo fato de gerenciar mal seus negócios enquanto devia para outras empresas.
Não houve punição?
Como eu disse, o pagamento de propina não era ilegal na Suíça. Portanto, não havia crime a ser punido. As acusações contra a Fifa foram retiradas e a entidade foi multada em 5,5 milhões de francos suíços (cerca de US$ 5 milhões) para custos legais.

Por que os governos não se envolvem ou a Justiça não faz algo?
Porque a sede da Fifa é na Suíça e a lei lá é muito permissiva. Para outros países, é inaceitável que esses homens se safem tão facilmente e que os altos dirigentes riam da nossa cara desse jeito. O que me deixa enojado é que os líderes dos países – o primeiro-ministro britânico, o presidente Lula e todos os outros – façam negócio com essas pessoas. Eles deveriam lhes negar vistos, deveriam dizer que não querem se relacionar com dirigentes tão corruptos. E tenho certeza de que, se os governantes se voltassem contra a corrupção da Fifa, teriam apoio maciço dos torcedores/eleitores.
Por que todos são tão complacentes?
Suponhamos que você seja uma torcedora fanática pelo seu time. Você vai à Copa do Mundo, mas como sempre há escassez de ingressos. Você então compra suas entradas de cambistas, mesmo sabendo que parte desse ágio vai voltar para o bolso da Fifa, já que ela é suspeita de liberar esses ingressos para os ambulantes. Você não pode provar, claro, mas você sabe. As pessoas não são estúpidas. Os governos menos ainda, eles podem investigar o que quiserem. Mas não investigam a Fifa porque os políticos simplesmente ignoram os torcedores. É o que já está acontecendo com a Copa de 2014. Qualquer brasileiro com mais de 10 anos sabe que a corrupção já está instalada. Por que ninguém faz nada?

Por quê?
É difícil saber. Se um país relevante enfrentasse a Fifa ela recuaria. Ou você acha ela excluiria o Brasil de uma Copa? Eles conseguem enganar países pequenos, esquecidos pelo mundo. Mas, se o Brasil dissesse não à corrupção, provavelmente a América Latina se uniria a vocês. E você acha que esses líderes latino-americanos nunca discutiram a possibilidade de um levante, de fazer o que os europeus já deveriam ter feito há tempos? Acho que lhes falta coragem.

O Brasil tentou fazer uma investigação, por meio de uma CPI.
Tentou e foi ao mesmo tempo uma vitória para o país e uma grande decepção, porque pararam de investigar no meio. O povo vai ter de pressionar os políticos a fazer algo. É realmente uma pena que o Brasil tenha chegado tão longe na investigação e tenha desistido no caminho. Havia provas para seguir em frente, para tirar a CBF das mãos do Ricardo Teixeira e, quem sabe, colocar auditores independentes lá dentro. A Justiça também poderia ser mais ativa. Por mais que eles tenham comprado alguns juízes, não compraram todos, certamente.
Sabendo de tudo isso o senhor ainda consegue curtir o futebol, se divertir com ele?
Sim, porque a corrupção não está tão infiltrada nos jogos, embora chegue a essa ponta também. Ela fica mais nos bastidores. Há exceções, como na Copa de 2002, em que a Espanha e a Itália foram roubadas grotescamente. Era importante para a Fifa que a Coreia do Sul passasse adiante. Não foi culpa dos jogadores, mas as razões políticas e econômicas se impuseram. Na Coreia, o beisebol é mais popular do que o futebol. Se eles fossem desclassificados, os estádios se esvaziariam. Neste ano, todos ficaram de olho nos jogos de times africanos. Blatter também precisa de um time do continente nas oitavas. A questão é que, quando assistimos às partidas, assistimos aos atletas, ao esporte, então, é possível confiar. É fácil punir um árbitro corrupto e a maioria não é corrompida.

Então, a corrupção não interfere tanto no esporte?
Cada centavo que os dirigentes tiram ilicitamente da Fifa ou das organizações nacionais é dinheiro que eles tiram do esporte e de investimentos. Portanto, estão desviando de nós, torcedores, e dos atletas que jogam no chão batido em países subdesenvolvidos. Eles tiram dos pobres.

É possível para os jogadores, técnicos e dirigentes se manterem distantes da corrupção no futebol?
Bom, o dinheiro normalmente é tirado do orçamento do marketing, não afeta jogadores e técnicos dos times nacionais. Uma coisa interessante é o comitê de auditoria interna da Fifa. Um dos membros é José Carlos Salim, que foi investigado muitas vezes no Brasil. Por que você acha que ele está lá? Para fingir que não vê.
A corrupção no futebol começa nos clubes e se espalha ou vem de cima para baixo?
Sempre haverá um nível de roubalheira em todas os escalões. Para isso temos leis e, às vezes, conseguimos aplicá-las. Mas a pior corrupção está na liderança mundial. Quase todos os países assinam tratados internacionais anticorrupção, mas não fazem nada quanto aos desmandos da Fifa e do COI. E, quando algum governante tenta ir atrás de dirigentes de futebol corruptos, a Fifa ameaça suspender o país. Só que ela faz isso com os pequenos. Fizeram isso com Antígua! Suspenderam o país minúsculo que ousou processar o dirigente nacional. Ninguém falou nada. Eu escrevi sobre isso porque tenho fãs lá que me avisaram do caso.

O senhor se sente uma voz solitária na imprensa?
Não confio na cobertura esportiva das agências internacionais. Em outras áreas elas são ótimas. Não no esporte. É uma piada. Apresento documentários com denúncias graves sobre a Fifa na BBC, num programa de jornalismo investigativo chamado [ITALIC]Panorama[/ITALIC], e dias depois a BBC Sport faz um programa inteiro em que Joseph Blatter apresenta alegremente a nova sede da Fifa em Zurique.
O senhor acompanhou a briga do técnico Dunga com a imprensa brasileira?
Não vou comentar o episódio porque não acompanhei de perto. Posso dizer que a imprensa inglesa e a da maioria dos países é puxa-saco. E sem razão para isso. A desculpa é que os editores têm medo de perder o acesso às seleções e à Fifa. Bobagem. Ora, eu fui banido das coletivas da Fifa sete anos atrás e ainda consegui escrever um livro e fazer várias reportagens. A imprensa deve atribuir as responsabilidades às autoridades. Se não fizer isso, é relações públicas. Tenho milhares de documentos internos da Fifa que fontes me mandam e não param de chegar. Por que só eu faço isso?
A cobertura se concentra mais no evento esportivo em si e nas negociações de jogadores?
Exato, também porque a chefia das redações tende a se concentrar nos assuntos de política nacional, internacional e na economia e deixar o esporte em segundo plano.

O que o senhor espera da Copa no Brasil, em 2014?
Há algumas semanas, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, deu um piti público cobrando o governo brasileiro para que acelerasse as construções para a Copa. Estranhei muito, porque não imagino que o governo brasileiro se recusaria a financiar uma Copa. Vocês são loucos por futebol, estão desenvolvendo sua economia, têm recursos e podem achar dinheiro para isso. Uma fonte havia me dito que Valcke e Ricardo Teixeira tinham tirado férias juntos, estavam de bem. Então, o que está por trás dessa gritaria? É pressão para o governo brasileiro colocar mais dinheiro público nas mãos da CBF. Mundialmente, as empreiteiras têm envolvimento com corrupção. Dá para sentir o cheiro daqui.
Três de seus livros são sobre as Olimpíadas. As falcatruas acontecem em qualquer esporte ou são predominantes no futebol?
Sou cuidadoso ao falar disso. Sei que a liderança da Fifa é muito corrupta – e venho publicando isso há mais de dez anos sem que eles tenham me processado nem uma vez sequer, o que diz muito. O COI era muito pior sob o comando de Juan Antonio Samaranch (morto em abril deste ano), que presidiu a entidade de 1980 a 2001. Ele era um fascista e o fascismo é, além de tudo, uma pirâmide de corrupção. Samaranch trabalhou ao lado do generalíssimo Franco. Essa cultura franquista e fascista se transformou em uma cultura gângster.
A corrupção no COI diminuiu com a saída de Samaranch?
Vou ilustrar com uma história. No meu site publiquei uma foto de Blatter cumprimentando um mafioso russo, em 2006, em um encontro com dirigentes do país. O russo foi quem fez o esquema em Salt Lake, na Olimpíada de Inverno de 2002, para que os conterrâneos ganhassem o ouro em patinação artística. Pois bem, Blatter, Havelange e muitos outros da Fifa são parte do comitê do COI. Essa é a dica de como a Rússia está agindo para sediar a Copa de 2018.

Foi assim que o Brasil conseguiu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016?
Na votação em Copenhague, que deu a sede olímpica para o Rio de Janeiro, o nível de investigação jornalística foi ridículo, só víamos a praia de Copacabana com o povo feliz. Há um grupo no COI que já foi denunciado por receber propina no escândalo da ISL – e quem acompanha a entidade sabe quem eles são. Os dirigentes dos países só precisam pagar umas seis ou sete pessoas para conseguir o voto. Existe, com certeza, uma sobreposição entre os métodos da Fifa e do COI. Mas a cultura das duas entidades não é tão estrita quanto à de uma máfia, é mais como se fossem máfias associadas, apoiadas umas nas outras. Coca-Cola, redes de fast-food, Adidas, você acha que essas companhias não sabem o que está acontecendo? Eles não são estúpidos. A cara de pau é tamanha que Jacques Rogue, presidente do COI, disse em Turim, em 2006, que o COI e o McDonald’s compartilham os mesmos ideais. Será que ele não sabe quanto a obesidade infantil é um problema gravíssimo em vários países? Ou faz parte do jogo ceder a esses interesses?

Por Juca Kfouri

segunda-feira, 10 de maio de 2010

...menos pressa pra chegar sei lá onde!

Se alguém me perguntar quando comecei a sentir a minha vida mais interessante, eu tenho a resposta na ponta da língua:

Além de quando voltei a surfar - foi quando comecei a me interessar mais por mim. A ser mais gentil comigo. A dar menos espaço ao que não tem importância e a respeitar o tamanho do que, de fato, me importa.

A querer me conhecer melhor.
A ter bem menos pressa pra chegar sei lá onde.

A apurar o ouvido para sentir a música das coisas mais simples, que cantam bonito e muitas vezes baixinho.

Quando comecei a me enjoar da mania de tentar entender tanto e abri o coração para apreciar mais. Quando comecei a buscar conforto em estar na minha companhia.


Às vezes, ao acordar, eu me olho no espelho e digo: Vamos lá Dio, fazer o melhor que a gente puder desse dia. Eu estou com você.

De uns tempos pra cá, não é que isso tem sido verdade?


Autor desconhecido

Da arte de não fazer amigos


1. Fale sempre a verdade, isto é, o que você acha que é verdade, mesmo que vá doer nos outros.

2. Seja sempre crítico, com olhos sempre atentos a tudo e a todos. Afinal, os defeitos devem ser revelados, para que as pessoas mudem.

3. Deseje que os amigos sejam sempre pontuais como você, corretos como você, dedicados como você, interessados como você.

4. Quando seu amigo errar, não o perdoe, porque ele não podia fazer o que fez.

5. Convidado para um aniversário de um amigo, faça qualquer outra coisa e não vá, mesmo que não seja nada, para não ter que encontrar pessoas desagradáveis.

6. Jamais dê um presente, sobretudo quando estiver bastante ocupado ou o dinheiro andar curto.

7. Na hora do jantar num restaurante, faça questão de dividir rigidamente a conta, real por real, centavo por centavo. Afinal, precisamos ser sempre justos.

8. Não responda às mensagens que os amigos lhe mandam.

9. Não desvie sua rota para dar carona a um amigo. Não saia da sua rotina para aceitar um convite.

10. Conte muitas histórias, todos os seus sonhos, mas nunca ouça os relatos dos outros, porque não são interessantes.

11. Pense que os amigos devem estar sempre à sua disposição e viva como se a recíproca não fosse verdadeira.

12. Jamais abra o seu coração com alguém.

Vi no blog do agora meu "amigo virtual" (risos) Pava.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ódio ao surfista

Toni Vilella, herói guarujaense.
Os metidos a locais e valentões deveriam se espelhar na postura de vida dele e no exemplo que nos deixou...


Em um portal designado a atender surfistas de todo Brasil, este título pode soar fora de contexto. Não está. Na verdade trata-se de um comunicado institucional, dirigido a todos nós, surfistas, simpatizantes, iniciantes e veteranos.

Mas gostaria de substituir a palavra “ódio”. Meu pai sempre disse que é um termo muito forte para ser usado sem certeza. Concordo e como ele tem mais moral, então substituiremos por “não suporto mais surfista”.

Há muito tempo digo isso em razão do meu desapontamento com a rapaziada. Estou perto dos 30 e surfo desde os 15 anos, quando herdei do meu irmão uma “Flor da Ilha”. Muita gente vai se identificar com este início, principalmente quem é aqui de Florianópolis (SC) e que conhece esta prancha.

Meu nível de surf está para “amigo da raça”. Vez ou outra sai uma batida, uma rasgada legal, uma penteada e raramente um tubinho para ganhar o dia, honestamente falando, pois sei bem a diferença entre uma penteada e uma boa “tubaca”, o que muitos não sabem.

Não sou local de nenhuma praia. Aqui, como a maioria, sempre surfei de acordo com as condições, o que faz muito local sair do seu pico para procurar coisa melhor. Para mim está mais para ‘‘deslocalismo’’.

Mas enfim, o localismo existe e deve ser levado a sério. Pelo menos no Atalaia, Itajaí, o único lugar que pude realmente constatar que haole não entra. Só lá! Ou alguém discorda? Em qualquer outro lugar forasteiros entram sim e ainda fazem a festa, ou são “arregados”.

Mas não é do localismo que quero falar e sim da atitude dos surfistas. Um dia destes um amigo que não é do surf me descreveu como invejava os surfistas: “Bixo, esta turma do surf dá um banho. Sempre na praia, tudo em forma, curtindo a natureza, relaxadão...”.

Relaxadão? Curtindo a natureza? Tive que interrompê-lo para dizer que ele não fazia ideia do que estava falando.

Expliquei que hoje em dia existe o localismo. Que em muitas praias surfistas não aceitam outros surfistas. Que o surfista, o garotão da praia, envolvido com a natureza, é no fundo um preconceituoso.

Expliquei que a indústria fabrica surfistas que nada entendem do esporte, que acham que basta tirar a calota do carro, encher de adesivo e amarelar o cabelo para entrar na água berrando, bicudo, sem respeito por nada.

Muitos dizem que não se trata de um esporte democrático. Estive no Rio meses atrás e vi dezenas de moleques da favela andando de prancha na mão, amarradões, sem vícios de marcas ou modismos, apenas curtindo o que as ondas oferecem.

O que se percebe atualmente é que no surf não existe o menor sentimento de companheirismo. Dentro d’água, o sentimento é competitivo e nada amistoso, como se cada onda perdida, pega por outro, despertasse o pior sentimento nos espectadores ali presentes.

Em uma pista de skate, crowdeada de profissionais e amadores, basta um qualquer executar bem uma manobra que soa o coro: “yeah!”. Aliás essa raça do skate sim dá um banho.

Tomar o exemplo desta galera não é difícil. Alguém já experimentou andar em uma pista cheia?  Trombadas, skate dos outros “espirrando” na sua canela (o que machuca demais), porém nenhuma briga, xingamento.

E olha que nem o mar está ali para esfriar a cabeça. Acho que, inconscientemente, existe o respeito ao ser humano, ao desconhecido que está ali compartilhando a mesma experiência. Não vamos considerar como uma virtude o respeito, mas sim como algo essencial para a boa convivência, um acessório de fábrica.

Enfim, pode ser uma opinião bem pessoal. Uns podem se identificar e outros não. É capaz de ter gente me esperando com uma pedra na mão na minha próxima queda.

Queria ver a galera mais relaxada, menos tensão no mar, mais surf e menos desrespeito.
Que os iniciantes busquem entender os fundamentos do surf antes de entrar em um mar crowdeado. Procurem saber o que é preferência, que rabear não é legal, que o mar merece respeito.

E veteranos, vocês já foram iniciantes, tentem ser mais compreensivos e, ao invés de dar um esporro, ensinem, compartilhem experiências, auxiliem. Não é utopia. Pratiquem isso pelo menos uma vez e garanto que as próximas serão mais fáceis.

Costumo dizer que o surf se tornou um esporte ingrato, que estava me trazendo mais desilusões que alegrias. Até que ontem levei meu cunhado, portador da síndrome de down para surfar comigo.

E nele, deitado na prancha pegando uma espumera, eu vi a pureza do surf novamente.

Paz no surf galera!

Gabriel Longo, via Waves

Recomendo também a leitura dos comentários

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Ovos quebrados


Chega um momento em que a relação precisa quebrar os ovos. É bom estar preparado.

Será como o trabalho doméstico: transparente. Lava-se louça, roupa, estende, retira os vincos com ferro, limpa casa, recolhe o lixo, arruma os brinquedos e os filhos nem reparam que tudo está novamente no lugar e no armário, apesar da bagunça feita recentemente. É óbvio que não vão agradecer. É o que chamo de passado secreto. Aconteceu, mas não merece memória. Entretanto, a raiva fica: não fui valorizado e resta um desmemoriado mal-estar.

Minha namorada resolveu comer omelete. Ela já fez o prato outras vezes em seu apartamento.

Estava em casa e me antecipei na captura dos ingredientes, louco para agradá-la. Mas a minha menção de executar a tarefa a desagradou. Entenda, é o passado secreto. O ardiloso passado secreto. Com minha efusiva disposição, ela desconfiou de que não gostava de suas omeletes e que somente agora, decorrido um ano, estava com coragem de falar.

Raciocinei que significava uma informação dispensável, meu modo era dourar os dois lados e o dela era envelopar a massa ao final, mas ela tratava o assunto com tamanha energia que até me assustou.

- Quer que eu faça?
- Não gosta do jeito que faço?
- Gosto, é que eu mostraria minha predileção...
- Gosta nada, quem já fez omelete para você? Quer do jeito de quem? Confessa?
- De ninguém.
- Ora, vai nessa, qual é a receita? Com queijo ralado, requeijão, fatias? Por que nunca me disse que não gostava da minha omelete? Eu me sinto uma idiota...
- Eu gosto, só busquei uma maneira diferente.
- Que maneira?
(Daí eu me danei)

Levaremos mais tempo discutindo na tentativa de prevenir a discussão. A conversa durou duas horas. Duas horas sobre absolutamente nada, a não ser o medo do que não foi vivido junto. Se aliso seu umbigo, acreditará que repito um convite libidinoso com uma antiga namorada. Quanto mais a gente se entrega, maior é o pânico de estar sozinho na doação, de ser uma miragem afetiva. Tanto que após desfiar um "eu te amo tanto", não ouse nunca mais declarar "eu te amo" - é como se amasse menos.

O ciúme está dobrado em cada gesto, fazendo contas e pedindo estornos. Não há saída; passe manteiga na conversa, aqueça a frigideira e admire os ovos quebrados na pia.

Repare como o negócio é tinhoso. Durante as compras, no caixa, costumava perguntar se ela estava naquele momento com troco. Não falava dinheiro, mas troco. Uso troco para tudo. Para quê? Ela já formulou uma tese de que empregava o código com a ex. Igual sina em nossas rotas românticas. Relaxados, sozinhos e prontos para namorar, peço que ela me alcance o champanhe do balde: - Por favor, me passe a "champs"? “Champs”? Feito o entrevero. Usava também esse dialeto com a ex.

O grave é que ela tem razão. Só não desejava brigar, ainda mais quando não tenho defesa. Ela poderia ser mais justa e me dar tempo para preparar uma mentira.

Fabrício Carpinejar, via Pavablog

sábado, 2 de janeiro de 2010

Chibata


Via Pavablog

Ano novo, vida nova!



Bendito quem inventou o belo truque do calendário,
pois o bom da segunda-feira, do dia 1º do mês
e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que
a vida não continua, mas apenas recomeça...

Mário Quintana

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

...sobre o tempo...

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Mário Quintana


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

...sobre relacionamentos...



Uma relação tem que servir para tornar a vida dos dois mais fácil.
Vou dar continuidade a esta afirmação porque o assunto é bom, e merece ser desenvolvido.
Algumas pessoas mantém relações para se sentirem integradas na sociedade, para provarem a si mesmas que são capazes de ser amadas, para evitar a solidão, por dinheiro ou por preguiça. Todos fadados à frustração.Uma armadilha.
Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.
Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo, enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio, sem que nenhum dos dois se incomode com isso.
Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada uma pessoa bonita a seu modo.
Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.
Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem o corpo um do outro, quando o cobertor cair.
Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro no médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

Dr. Drauzio Varela

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Imaginação em bloco

Natal de 1996. Ganhei de presente do meu pai minha primeira prancha de surfe. Era uma velha Hidrojets amarela com mais furos do que uma peneira, mas que foi o suficiente para aprender a ficar de pé e não parar mais.

O tempo passou e fui aprendendo algumas coisas. No entanto, depois de quebrar e perder o bico de uma prancha comprada do aussie Richie Lovett anos atrás (aquele mesmo que lutou recentemente contra um sério câncer no quadril), percebi que algo novo tinha acabado de acontecer.

A descoberta Aquela 6’1” legalzinha, mas já meio pisoteada e sem bico, sem querer, tinha ficado boa pra caramba. O que teria acontecido?

Fiquei me indagando a respeito disso, e acabei chegando à conclusão de que o formato das pranchas que sempre usei nunca mudara, à exceção de tamanhos e rabetas.

Muito provavelmente, isso era reflexo do fato de ter começado a surfar numa época em que a “Thruster” já era consolidada como a última tecnologia em pranchas de alta performance. Outra grande influência foi o convívio com meu primeiro shaper “interino”, o carioca Braz Barros, um dos poucos artesãos remanescentes de uma época em que as pranchas eram feitas totalmente à mão, e que tem como especialidade justamente pranchas de linha com essa característica.

Primeiro contato com outros shapes
Passado um tempo, fiz minha primeira surf trip internacional para o Peru, país vizinho e de fácil acesso. E foi exatamente lá que tive minha primeira experiência com outras formas de prancha.

Em Señoritas, tinha um cara quebrando muito com uma fish biquilha. O sujeito fazia a linha da onda tão rápido que parecia estar literalmente voando.

Isso me influenciou tanto que, logo que voltei ao Brasil, pedi ao Braz que fizesse minha primeira prancha diferente. A prancha remava muito, era veloz e solta, mas rendeu bem menos nas fechadeiras de Ipanema do que nas longas linhas peruanas. Era exatamente o que eu precisava para me motivar ainda mais!

Hawaii das muitas pranchas A minha real revolução das pranchas se deu quando fui morar na Meca e berço do surfe: o Hawaii. Lá, vi de tudo um pouco.

Havia uns “coroinhas” que faziam a mala da garotada em Sunset com gunzeiras monoquilhas. Tinha também uns doidos surfando Waimea e Pipeline com pranchas de madeira, além dos caras da Lost filmando o “Redux” com pranchas do tamanho de bodyboards. Eram tubos surfados com pranchas sem quilha, pranchas de remada, que também serviam para longas travessias nos dias flat de verão. Enfim, valia de tudo.

O importante era estar na água, curtir mesmo sem prancha e embarcar ao máximo naquela experiência.  A cultura surf no Hawaii é tão grande que absorvi bastante informação sobre diferentes tipos de prancha.

Quiver dos sonhos Com bastante trabalho consegui ter acesso a um quiver bem sortido, e entender que cada condição tem seu equipamento mais indicado. A oportunidade de ter pranchas fora do convencional faz toda a diferença em determinadas situações, além de ser a melhor resposta para o surfista inconformado com a mesmice do dia-dia. É o alimento pro surfe e pra alma também.

Experimentar pranchas “doidas” foi responsável por uma evolução tremenda. Testar bordas, fundos, rabetas e materiais diferentes como o isopor e a resina de epoxy me tornaram muito mais consciente do meu surfe. Saber que a área de uma prancha pode ser redimensionada traz todo o entendimento para ter uma prancha que renda muito mais.

Não tem preço perceber que, após alguns anos, aquela prancha sem bico não ficou “melhor” por simples crença! Sem uma área significativa todo o seu funcionamento foi refeito assim como seu peso, remada e pisada.

O papel das quilhas Não esquecemos também das quilhas, que são os lemes da prancha! Há um ano venho utilizando Future Fins e achei nesse sistema, consagrado lá fora, principalmente no surfe em ondas grandes e gigantes, a maneira mais fácil, rápida e sólida de testar diferentes “sets”.

Com jogos de todos os tipos para as mais diversas modalidades de pranchas se consegue testar uma gama enorme de combinações em um mesmo equipamento. É essencial para entender porque “quads” são mais rápidas, quilhas centrais mais presas e assim por diante.

Quanto mais surfamos ondas diferentes mais evoluímos, mas, na falta de tempo e dinheiro, uma simples mudança de equipamento pode se tornar o fator determinante para a evolução e satisfação, pelo menos foi o que aconteceu comigo.

Estar aberto às novidades e também às antiguidades sem medo de ousar foi o maior diferencial em todos esses anos de surfe. Aproveitar a presença de shapes gringos e de referência mundial, como Tokoro e cia., aqui em terras tupiniquins; observar que não necessariamente o que vem de fora é melhor ou pior, mas apenas diferente, e instigar meu shaper predileto a fugir da squash triquilha 6’0” de sempre e revolucionar, é o maior aprendizado possível!

O vídeo de link acima mostra uma rápida session no Grumari com a réplica de uma “Simmons” biquilha shapeada por Careca, da Shine Surfboards.

Bom surf e boas vibrações a todos!

Fonte: Omar Docena, via Waves

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A involução da escrita



Existem também as pessoas que "vivem" pela e para a internet, fazendo da grande rede o seu mundo, e relegando o verdadeiro - e real - para  segundo plano... daqui há pouco vai ter gente que prefere jogar videogame do que pegar uma onda. Patético...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O inferno é o excesso de bem

Folheava com admirável assombro um livro de gravuras sobre o inferno.

Mundaréu agonizando castigos indescritíveis. Vítimas de chicotes, fogueiras e arreios. Mulas de pedra e dor. Um mar de cotovelos e joelhos estalando no precipício.

Os pais me emprestaram as pinturas para ficar com medo de pecar e só aumentaram a minha curiosidade.

Não levei a sério. Se fosse verdade, o masoquista faria reserva do caldeirão.

Discordo que o inferno seja a privação do que gostamos. A renúncia do que não valorizamos.

O inferno é o que a gente ama, mas em excesso.

Lembro da torta de nozes. Era apaixonado, comia uma fatia por noite durante anos. Botava guardanapo na gola para naufragar a barba no creme. Hoje não suporto o cheiro. Tortura seria me colocar dentro de uma vitrine repleta do doce. O mesmo ocorreu com a panelinha de coco, o alfajor, o chocolate em barra.

Alegria em demasia é tristeza. Quem repete três vezes seu prato predileto tem rosto de velório.

O paraíso é o bocado, o gole gostoso, o pouco intenso. Deixar o que se deseja para depois e nunca deixar o desejo.

As mulheres reivindicam homens românticos. Pedem escandalosamente um perfil gentil, amável, cordial, obediente, misto de agenda (capaz de lembrar todos os aniversários e datas comemorativas) e diário (que escreva poemas e preencha cartões floreados). Na hora em que encontram o sujeito sonhado, querem distância. Consideram a figura grudenta, gosmenta, tediosa. Resmungam que é muito submisso (se você vem sendo chamado de fofo pela namorada está a um passo do despejo)

Os homens procuram mulheres com irrefreável apetite sexual. Para ter sexo a cada turno. Sem enxaqueca, trabalho e preocupações familiares. Caso pudessem, adotariam arquitetura de motel no quarto com retrovisores na cama.

Pois quando se deparam com uma ninfomaníaca viram monges. Usam pijamas listrados. Decidem discutir a preliminar. Forram a cabeceira com dicionários. Revelam traumas de infância.

Torna-se insuportável trepar a cada quinze minutos e não terminar um pensamento inteiro. Não é mais questão de virilidade, é de sanidade. A transa depende da lembrança para renovar a imaginação.

Qualquer cinéfilo que assista a 12 horas de filmes fugirá da tela em branco. Qualquer médico que fique 36 horas de plantão desistirá de suas mãos.

O exagero do bem enjoa. O exagero do prazer é o inferno.

Fabrício Capinejar

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Há exatamente 01 ano atrás...

...meu perfil no Orkut dizia isso sobre minha personalidade:




Sou apaixonado pelo surf. É na água que eu me perco e me encontro, é de lá e desse sentimento que eu tiro a energia e o sorriso que eu preciso para continuar... a viver, a surfar...

Sinto que quando não estou na água surfando ou esperando a minha onda... eu sou uma pessoa infeliz.

É como se nada mais tivesse significado ou importância para mim - mesmo que eu tente parecer com que não...

Porque quando eu dropei minha primeira onda, eu senti algo inexplicável, o significado da palavra FELICIDADE se tornou real em minha vida como nunca havia acontecido antes.

Pode parecer vazio, tolo até. Mas não tem explicação, é como tentar definir em palavras as diferenças entre as cores, ou definir o que é paixão.

Só quem se apaixonou sabe o que é, como é, e como é bom!

E eu sou apaixonado pelo surf, e o resto, para mim, é secundário.

Faço o que tenho que fazer diariamente para poder surfar - trabalho, administro minha lojinha, minhas poucas finanças. Não me condeno, não me culpo, simplesmente vivo para surfar e surfo por que preciso me alimentar dessa energia e dessa felicidade.

Algumas pessoas precisam trocar de carro todo ano, comprar aquela roupa caríssima, colecionar amores - eu preciso apenas surfar, surfar, surfar. Apenas isso, surfar e viver... Que o mundo consuma e seja consumido nesse frenesi desenfreado, nessa fúria de acabar com o planeta, de cada um superar o seu semelhante, seu irmão.... Essa vida é passageira!

Mas a batida que eu dei ontem, e o noseride que eu farei amanhã - naquela valinha só minha, ao amanhecer do dia, sozinho, apenas eu e o sol como testemunha... ah, essa lembrança é eterna e ficará para sempre comigo, e eu a levarei para onde quer que eu vá, para onde quer que eu for...

E isso não tem preço, e nada se pode comparar a isso.

NADA!

Não nessa vida.

Nada mudou! Só meu amor pelo surf.
Se tornou maior e mais intenso...

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Meu vício é você...



"Be careful if you love to surf. It's highly addictive. It's the only drug I know of that, when taken, 'just once more' will add years to your life."

- Bill Hamilton (50-year unrepentant surf addict)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Nat Young e o prenúncio das cordinhas

"Ponte" - imagem extraída do surfresearch.com.au

“Lembro de estar sentado com Russell e Garth pegando sol matinal em Lennox Head no inverno de 1972, em frente ao velho carro de Garth, e a conversa virou para as cordinhas (leg-ropes) porque alguém colocou uma na nossa frente. Era uma manhã como qualquer outra. Tinhamos avançado com o carro até que o córrego impedisse a passagem para Lennox Point. Como éramos surfistas competentes, tínhamos a opinião unânime de que cordinha era algo que os americanos usavam para passear com o cachorro, nunca para surfar. Só um prego usaria uma cordinha.
Nossa atitude era compartilhada pela maior parte do mundo do surfe em 1972, mas o fato é que estávamos todos tentando surfar cada vez mais no crítico das ondas. Eventualmente, querendo ou não, alguém botava um pé fora do lugar, caía, era atingido por uma prancha perdida.
Em um pico como Lennox, remendar a prancha depois do surfe era algo cotidiano e eu sempre levava resina no carro. Se necessário, eu recolocava uma quilha e voltava pra água em meia hora. Fazer remendos era parte da vida, algo que acontecia com todos os surfistas antes de 1974.
De qualquer jeito, nessa manhã de junho em particular, nossa atenção passou das ondas para um norte-americano recém-chegado chamado Bob Newlands. Parecendo extremamente primitivo, ele engatinhou pelas pedras com uma cordinha presa ao tornozelo, a outra ponta presa na quilha. A corda arrastava atrás dele, prendia nas pedras, ele fazia lento progresso quando uma onda da série quebrou sobre ele. Quase morremos de rir assistindo seu esforço em usar a prancha como apoio para pular das pedras. Finalmente ele chegou lá fora e dropou uma onda de bom tamanho. Como esperávamos, ele caiu após algumas viradas, mas em vez de ter de nadar até a prancha, simplesmente subiu de novo nela e voltou direto para pegar outra onda, e outra. Na verdade ele surfou até dizer chega sem nem pensar nas pedras. Finalmente a ficha caiu: quem eram os idiotas ali? Foi um prenúncio do que estava por acontecer – levou um ano e pouco, mas em algum momento entre 1972 e 1975 todo mundo passou a usar cordinhas, o tempo todo.”

*Traduzido do livro Nat’s Nat and That’s That - a surfing legend, de Nat Young.

Fonte: surf4ever